segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Em terra de cego quem tem um olho é rei?



Herbert George Wells, em seu conto “Em Terra de Cego”, conta a história de um povo lendário que mora num lindo vale isolado, onde seus moradores possuíam uma característica em comum, todos eram cegos. O narrador os descreve como um povo feliz com uma vida normal, harmônica, agradável e metodicamente organizada. Eles não tinham noção do era enxergar, logo a visão não lhes fazia falta, pois já haviam se adaptado às suas necessidades. Sua harmonia foi quebrada apenas com a chegada de um estranho que podia ver, o qual traz no seu íntimo a intenção de dominá-los, tomando por base o ditado popular “em terra de cego quem tem um olho é rei”, este se considera superior por possuir todos os cinco sentidos funcionando. Mas no decorrer da história, o estranho termina dominado pelos cegos, anulando assim a eficácia do ditado popular, tantas vezes repetido por ele. Este ainda teria que se submeter a uma cirurgia que lhe arrancaria os olhos e seu dom mais especial, a visão, para enfim ser aceito totalmente. Esta imposição o leva a fugir, deixando para trás um começo de vida e um amor que havia brotado na terra de cegos, mesmo sem ter certeza de que conseguiria voltar à civilização e ao que tinha deixado por lá. Ele segue o caminho de volta e quando é tomado pelo cansaço, que aflige tanto cegos como videntes, ele faz o que só os videntes podem fazer, se rende à contemplação e o conto termina.
Na película “Ensaio sobre a cegueira” baseado no livro de mesmo nome, da autoria de Saramago, é narrado o acontecimento de uma epidemia de cegueira, iniciada com um japonês e transmitida para pessoas que tiveram contato físico com ele, como seu oftalmologista, os que lhe prestaram socorro durante sua crise, e estes últimos terminaram por disseminar a enfermidade. O governo decide enclausurar em uma espécie de abrigo todos os que manifestam a doença. Entre os infectados, apenas uma pessoa permanece com a visão intacta, a mulher do oftalmologista, tendo o cuidado de manter esse detalhe em segredo, tudo indica que é pelo fato dela ter se privado do sono, pois os outros manifestaram a doença logo depois que acordavam. Neste ambiente hostil, eles criam formas de adaptação à nova realidade, sempre assistidos cuidadosamente pela única vidente, que contraria o ditado popular anteriormente citado, visto que ao invés de se propor como rainha entre os cegos, ela se coloca com auxiliadora e protetora, mãe e enfermeira deles. No entanto, um outro personagem, cego, se intitula rei da ala 3, instaura uma ditadura no local, consegue seguidores e juntamente com eles traz desarmonia, violência e morte. É contra esse rei mal que o grupo do bem se revolta, após a morte de uma companheira. A mulher do médico mete uma tesoura no pescoço dele, e outra interna toca fogo em toda a ala 3. Neste momento, o grupo resolve fugir. Para a surpresa deles, o caos também havia se espalhado cidade afora. A perda da visão havia reduzido os homens à condição de bichos. O filme também levanta reflexões sobre dignidade, solidariedade e esperança. No final da história, o primeiro a ficar cego também é o primeiro a voltar a enxergar, o fato é recebido com alegria, apenas uma pessoa permanece em silêncio, a vidente, com medo de dizer “agora estou cega”, enquanto ouvia seus companheiros dizerem “agora, eu posso ver”.
Existe, portanto, uma forte ligação entre as três propostas, conto, filme e ditado popular, que transcende o tema da cegueira, pois em todas elas podem observar-se uma reflexão sobre a própria essência humana, na sua necessidade de delimitação de espaço, em exercer autoridade sobre os demais e na capacidade de esquecer valores e princípios morais quando sofre privações. Certamente o ditado “Em terra de cego quem tem um olho é rei” não se adequou às situações do filme e nem tão pouco às do conto. Talvez a criação de um novo ditado equacionasse a questão, me arriscarei a oferecer uma opção: “Em terra de gente manter o sentimento funcionando é mais importante do que manter os sentidos em si, e só quem tem o poder de sentir é que deveria reinar”.